sábado, 20 de julho de 2013

Depois

Até a casa parecia ter se tornado mais amistosa. Era como se ela recebesse o trio com alegria, como se suas entranhas se regozijassem com o fato de abrigar três almas do tamanho do mundo. Subiram as escadas sorrindo de si mesmos, de como tudo tinha se engendrado até ali, de como todo um universo tinha conspirado para que eles se reencontrassem.
No andar de cima, no último quarto a direita no corredor, estava o refúgio ainda improvisado de Christopher. Ele se adiantou, abriu a porta, esperou que Emilie e Konstantine entrassem e acompanhou-as de perto. Um sorriso matreiro dançava em seus lábios, mesmo que aquele fosse um momento que exigia certa sobriedade e quem sabe até uma tristeza oportuna.
Mesmo que aquele fosse um simulacro, deveria ser tratado com a mais certa constatação de que era um fim.
Ambas entraram compartilhando do mesmo sentimento que misturava alegria e catarse.
- Por favor, Christopher! – disse Konstantine quebrando o silêncio – Amanhã vamos dar um jeito nesse muquifo. Vamos comprar uma cama para você e umas cortinas e poltronas e carpetes. Essa casa anda muito vazia!
- Concordo plenamente, Konst – disse Emilie enquanto sorria junto de Christopher.
- Vamos, vamos sim. Quero também aproveitar e dar uma passada no armazém e naqueles quiosques aqui perto. Também preciso comprar algumas sementes e bulbos, se eu encontrar. Andei tendo umas ideias!
- Ai, ai. Você e todas essas plantas que só você sabe o nome. Ainda me pergunto como é que você consegue, sério... – fungou Konstantine.
- Herança do meu pai, tu bem sabe!
- É, ainda sustento o fato de queria ter conhecido ele. De verdade, deve ter sido um homem muito peculiar.
O trio sentou-se no colchão surrado a fim de mexer em suas bagagens. Emilie e Konstantine trouxeram suas malas do hotel e agora as esvaziavam e espalhavam o estofo de cada uma de forma que ficasse organizado em pequenas pilhas. Cada um analisou, ponderou, rememorou o significado daquilo que tinham escolhido para levar consigo quando voltassem ao quintal.
Tendo selecionado o que de fato contava muitas coisas sobre eles, rumaram para o andar de baixo mais uma vez em marcha silenciosa.
Em breves minutos estavam novamente embaixo do ipê, descalços, sentindo a grama molhada e a brisa que soprava dançando entre eles.
- Pois bem. Acho que eu vou primeiro, meninas.
Ambas apenas deram de ombros, concordando sem se importar com a ordem que dariam para os sepultamentos.
Christopher trazia entre os braços cruzados um caderno simples, encouraçado em tom marrom, um tanto surrado nas bordas e que exalava um cheiro forte de alfazema. Konstantine não conseguiu evitar a surpresa ao ver que o amigo iria mandar para o túmulo um de seus diários mais expressivos. Ela mesma relera diversas vezes, tomara a liberdade de comentar em algumas páginas. Aquele caderno pertencera tanto a ela quanto a ele. Baixou a guarda, conteve-se para que não mandasse Christopher subir e escolher outra coisa, que ela mesma ficaria com aquele diário. Não negou o alívio ao ver ele depositar o volume em uma sacola de couro, visivelmente bem costurada. Na penumbra viu, segundos antes de o caderno sumir dentro do pacote, alguns números cintilarem em tons prateados na base da capa frontal: “2007~2008”. Releu lentamente como se consumasse um ritual que sempre fez todas as vezes em que teve aqueles escritos em sua mão. Emilie sequer alterou sua expressão. Ela mesma nunca teve grande apego a diários, agendas ou cadernetas. Quando finalizava um costumava arrancar todas as páginas e distribuir as que mais gostava entre alguns amigos especiais. O resto conhecia o fogo logo em seguida.
O rapaz abaixou-se, colocou o pacote no centro da cova e apenas disse:
- Se é possível enterrar uma ruptura, estou fazendo isso agora.
A terra molhada pululou sobre o couro, gradativamente abafando os sons e se tornando fofa à medida que ocupava todo o espaço da cova aberta.
Emilie se aproximou silenciosa, tirou do bolso algo que cintilava entre os seus dedos. Era um camafeu de aparência antiga. Do outro bolso tirou uma pedra pequena que colocou dentro do colar. Com um esforço mínimo forçou as dobradiças delicadas do adorno; o trio ouviu um tilintar quase inaudível, mas suficientemente alto para saber que algo havia se quebrado. Tirou a pedra de dentro do camafeu e colocou-a novamente em seu bolso. Segurou a corrente do colar e soltou-o, de modo que o mesmo afundou alguns centímetros na terra escura. Depois de enterrado, pisou sobre o túmulo e disse:
- Enfim, está morta.
Konstantine sacou do bolso um envelope pardo, mediano. Abriu, tirou de lá uma folha de papel cheia de floreios e preenchida por uma letra miúda, que ela sempre achou que fosse enfeitiçada. Deu uma última olhada e abaixando-se, depositou o papel aberto no meio da cova. Quando este tocou o chão, a terra úmida borrou algumas palavras, fazendo com que a carta amolecesse, como se realmente morresse. Christopher reconheceu imediatamente. Aquela era a sua letra, e o perfume que se misturava com o de terra molhada, era o seu. O perfume que usava há sete anos. Era a primeira carta que escrevera para Konstantine. Sorriu levemente para a amiga, que lhe retribuiu com lágrimas que pareciam flutuar nos seus olhos morenos.
- Eu repetiria tudo, com os mesmos erros, mas hoje... Hoje não. – disse ela compactando a terra da superfície do túmulo com os pés.
Quando as três covas enfim foram fechadas, uma súbita rajada de vento desprendeu gotas pesadas das folhas do frondoso ipê acima deles. As gotas caíram sobre a terra recém revolvida, em tons ocos.
- Acho que terminamos, não é? – constatou Christopher.
- Creio que sim. – disse Emilie, ainda distante.
- Será que estes mortos irão nos assombrar? – questionou Konstantine, mais para o céu e para o vento do que para os dois amigos que ali estavam.
- É claro que sim. Enterrar nunca foi sinônimo de esquecer. Mas, querendo ou não é um ultimato, não é?
A retórica de Christopher pairou no ar por alguns instantes. Ele estendeu ambas as mãos para as moças que de forma terna as seguraram. Caminharam lentamente pelo gramado, voltando para a porta que levava ao quintal.
Naqueles minutos que gastavam para chegar até a casa, subir as escadas e ir ao quarto, ocorreram milhares de coisas que pareciam fluir diretamente da mente de um para o outro.
Pensavam que sim, sabiam que lá no fundo havia tanta beleza no mundo que eles só queriam enxergá-la. Pensaram nas tardes de domingo; nos dias que sorriam; qualquer que fosse o motivo que deixasse o peito em fogo e justificaria uma vida ao menos morna.
O mundo poderia acabar naquele instante, mas os três estariam entregues àquela dança que o destino lhes tinha ensinado.
Christopher pensou naquela noite, numa data que já nem lembrava, a primeira vez que olhou Konstantine de perto. Nunca esqueceria a graça daquela menina. Assim como nunca se esqueceria do dia em que quebrara anos de gelo e singrara as águas da ilha que Emilie representava. Para sempre seria uma vitória pessoal, com o mais valoroso prêmio para ele: a amizade daquela moça tão importante. “Eu de saias”, ele pensou, rindo-se.
Konstantine então entendeu que era por isso que todos eles se entregaram àquele imediatismo cego. Ela, um dia tão sonhadora, certo dia passou a namorar o agora. Desacreditou-se do depois, mas lhe ocorria naquele momento que se o fim fosse aquele, que fossem só eles três. Eles naquele lugar que ela chamava de “fora”. Fora do medo, fora da dúvida, dentro da paz, sinônimo de respostas. Ela estaria preparada para o fim.
Emilie apenas aquiesceu seu coração. De verdade, aquele fora um fim, e por ela, por eles, dançaria aquela valsa que emanava de tudo, que respondia tudo e calava até a mais atroz das desconfianças.
Quando adentraram o quarto, ela olhou para Christopher e Konstantine e respondeu a pergunta que eles discretamente tentavam esconder no olhar, sem muito sucesso.
- No camafeu era uma foto minha – sentenciou ela.
Christopher sorriu levemente. Olhou pela janela, viu o céu que lentamente vestia-se de um negro profundo. “Amanhã não choverá”, pensou.

Uma brisa morna entrou pela janela fazendo cócegas no nariz de Konstantine. Levantou-se mansamente e viu o sol vívido que se estendia sobre tudo. Raramente gostava de dias ensolarados, mas aquele estava excepcionalmente bonito. Tratou de acordar os outros, tomariam café ali perto, com aquele bom chocolate quente. Arrumados, saíram rumo aos quiosques que vendiam todo tipo de alimentos e quinquilharias. Christopher sempre foi um verdadeiro rato de sebos, brechós, bazares e feiras de plantas. Enquanto criança seu pai costumava lhe comprar brinquedos antigos, desses que nenhuma outra criança tem. Foi assim que cresceu alheio a vídeo games e coisas do gênero. Sua família poderia não ter dinheiro para aquilo, mas seu pai tratava de burlar as dificuldades adensadas pelo vício que um dia lhe tiraria a vida.
- Bom, chegamos! – disse Christopher olhando as barracas circulares. – Você vai começar por onde, Konst?
- Ah, vou procurar pelas roupas de cama!
- E eu pelos carpetes – acrescentou Emilie.
- Ok, vou ver se encontro uma cama boa, em bom estado e claro, barata. Mãos a obra!
- Calma Christopher, antes vamos ali naquele livreiro.
Caminharam rapidamente a uma banca repleta de livros, revistas e jornais exóticos, que pareciam noticiar coisas totalmente alheias ao mundo.
- Tudo jornal de margem! – comentou Konstantine.
Por alguns segundos a moça de melenas arroxeadas sumiu por entre os calhamaços ordenados de forma distinta. Pagou algo e veio com a pequena sacola.
- Aqui, toma – disse ela entregando o pacote na mão de Christopher. – Vai anotando os preços.
- Que bonita, Konst! Obrigado! – sorriu ele segurando uma pequena caderneta de couro com miolo de pergaminho costurado.
E foram cada um para um lado. Christopher adorava o clima de lugares como aquele. As músicas diferentes a cada quiosque, os cheiros de quitutes sendo preparados aqui e ali, o vozerio alegre e disposto a conversar, quiçá pechinchar.
Mas foi caminhando que ouviu, acima de toda aquela agradável baderna, uma melodia muito cálida tocada ao piano. Percebeu que o som vinha de uma loja de instrumentos musicais, um tanto antiga, sem tradição, mas amistosa e convidativa. Entrou, desejou bom dia à mulher atarracada que estava no balcão. Ela perguntou ao jovem se podia ajudar em algo, ele apenas perguntou se podia ouvir a música e ver quem tocava. Ela sorriu e apontou um pequeno corredor que levava a uma sala com vários pianos dispostos.
Christopher se sentou silenciosamente, deixando que as notas musicais chegassem a ele e dissessem tudo o que queriam dizer. Tentou distinguir a melodia, mas enfim percebeu que não conhecia aquela música.
Um rapaz não muito mais velho que ele, mas mais alto e de feições mais maduras, tocava no piano bem ao centro. Ele tocou algumas notas a mais e concluiu o trabalho. “Deve ter vindo afinar os pianos”, pensou Christopher. O jovem pianista se levantou com muita galhardia, parecia flutuar. Seus olhos verdes eram emoldurados por um discreto óculos, barba densa, mas bem aparada. Era sério. Magriço, mas não mais que Christopher. Saiu pela porta lateral sem ver o rapaz que o observou tirar aquelas notas que de algum jeito tinham um tom saudoso. Esperou que o músico sumisse de suas vistas, levantou-se e foi até a partitura ainda aberta. Numa olhada rápida, percebeu que aquela pasta não pertencia à loja. Esperou um pouco no intuito de que o rapaz voltasse; assim lhe entregaria a pasta, mas no mesmo instante pensou no quanto aquilo seria bobo. Ele nem o conhecia e ainda assim estava numa loja, seria no mínimo educado que alguém responsável pelo estabelecimento guardasse aquelas partituras e devolvessem a ele quando voltasse.
Mas a curiosidade era maior. Marcou a partitura para que esta não se perdesse em meio às outras, procurou por algum nome na pasta, até que encontrou uma anotação em letras corridas, que pareciam ter pressa. Dizia:


“Appartiene a Felipe Rossetti”

“Tem nome de carbonário”, pensou Christopher. Abriu a caderneta e transcreveu o nome na primeira página. Voltando à página da partitura, tentou ler com um italiano que nunca fez parte de qualquer estudo linguístico seu: “Adios Nonino – Piazzolla”.
Levou a pasta aberta até a recepção. Explicou para a moça que o pianista a havia esquecido. Ela apenas disse, dando de ombros:
- Ah, é o Felipe. Ele vem aqui todos os dias. Quando não toca por pelo menos uma hora, arranja de afinar os pianos. Foi um presente para nós, aquele rapaz. Ninguém mais quer saber dos elefantes brancos que são esses pianos de cauda...
- Eu imagino – disse Christopher simulando atenção. – Mas, muito obrigado, eu pretendo voltar, certo?
- Ah, certo! E olhe, se quiser aprender piano aqui damos aulas.
- Eu acho lindo, de verdade, mas tenho mãos pequenas e paixão por violoncelo.
- Bem, mãos pequenas são mais ágeis, lhe garanto!
- Acreditarei em você.

Quando se reencontraram traziam consigo muitos embrulhos e sacolas.
- Christopher, nós deveríamos ter vindo com o Oldsmobile – disse Konstantine um tanto esbaforida.
- Vocês me esperam aqui? Não é muito longe de casa e eu também preciso levar a cama que está desmontada e embalada ali na loja.
- Ah, sim. Vai lá, te esperamos aqui.
Ela e Emilie sentaram-se num quiosque próximo enquanto degustavam algo refrescante. Christopher voltou alguns minutos depois, ajudou-as a acomodarem as sacolas no porta malas. Voltaria depois para buscar a cama bonita e em bronze que encontrara por preço muito agradável ao bolso. Quando puseram-se a caminho, Konstantine perguntou:
- Eu estava conversando com Emilie, Christopher, e há algo que ainda não entendemos.
- Diga...
- As lápides. Como elas chegaram ali? E a data do sepultamento? Você esteve o tempo inteiro conosco e com Thompson.
- Ah, tudo foi organizado por Deliverance. Quando visitamos o Thurston Moore ela encomendou as lápides; agora, com relação à data do sepultamento, não me perguntem. Isso é algo que veio totalmente dela.
- Eu imagino a cara dos funcionários quando vieram entregar as lápides e ainda as instalarem no fundo de um quintal. Isso é tão medieval, gente!
E todos riram muito. Recordaram de forma breve da magia que emanava de cada gesto de Deliverance. Com toda a certeza haveria nela mistérios que jamais seriam desvendados.

Pouco depois de chegarem a casa, trataram de desempacotar tudo. Christopher se ocupou de montar a cama, o que não levou muito tempo e permitiu que ele ajudasse suas amigas com os restante dos afazeres.
Quando preparou-se para descer, parou por alguns instantes no topo da escada para admirar a sala que agora ganhava mais vida. Emilie havia comprado um carpete simples, mas de muito bom gosto. Era suficientemente grande, com pelos aparados de forma a deixa-los confortáveis. A sua cor vinho casava com as almofadas que Deliverance lhe tinha presenteado. Agora só faltava um piano, violão e mais amigos. Foi quando a campainha soou por toda a casa e o tirou das análises decorativas. Konstantine adiantou-se e abriu o portão, acompanhando Deliverance para dentro de casa.
- Está uma prenda de bonito! – disse ela ao ver o carpete estendido sobre o chão de linóleo. – Christopher, - continuou – eu recebi uma ligação de seu interesse.
- E quem era? – perguntou ele um tanto curioso.
- Gregory quer falar com você. Pediu para encontrá-lo daqui à uma hora na Praça VIII.
- Ah, tudo bem, mas você me ensina onde é?
- Claro, é muito fácil.
Christopher não esperava um novo encontro com o investigador em tão breve tempo, mas pensou que deveria ser algo importante. Trocou de roupa e foi para a praça indicada, longe dali apenas quatro ruas. Antes de sair, lembrou-se:
- Preciso comprar um telefone para cá e também um colchão para mim! – falou em alto e bom som.
De pontos distintos da casa, ambas concordaram, rindo-se dos esquecimentos cômicos do amigo.

Gregory Thompson não tardou a chegar. Sentou-se ao lado de Christopher e ficou por alguns minutos admirando o farfalhar que o vento quente daquele começo de tarde produzia ao dançar pelas árvores.
- Eu estou feliz por você, Christopher – começou ele.
- Eu agradeço Gregory, mas quero muito que você encontre a sua paz.
- Isso já não é mais direito meu.
- Bom, eu ainda acho um equívoco pensar dessa forma, mas cada um pode com o que constrói para si, não é? – disse Christopher olhando nos olhos do investigador.
- É que agora sinto que não há nada, meu rapaz. Fiz tudo o que eu podia, tudo o que estava ao meu alcance.
- E isso é admirável, tenha certeza.
- Agora eu acho que você já pode começar a sonhar novamente – disse Gregory, um tanto reticente.
- Eu nunca esqueci como é isso. Só estava dormente... – sentenciou Christopher.
- É, um rapaz como você gosta de sonhar grande. Aposto que já tem todo um futuro traçado a partir daquela casa.
- Certamente – confirmou Christopher curioso pela observação que Gregory começava a construir.
- Você chega a ser perigoso, Christopher.
- Como assim?
- Sua determinação, sua aura de sonho constante, isso sempre atrairá gente disposta a ir com você.
- Gregory... Você está mesmo insinuando o que estou pensando?
- Acalme-se meu caro, eu me expressei mal... – adiantou-se o investigador bastante desconcertado. – Eu só espero que daqui por diante você saiba exatamente aonde vai chegar. A solidão, o desgosto pela vida, todos os sacrifícios que lhe serão impostos justamente por ser um sonhador.
- Eu não me importo.
- Eu também não me importei, e olhe só para mim...
- O que eu vejo é apenas o que você se deixou ser, Thompson. Não há nada aí que tenha resultado naturalmente. Você mesmo talhou em si um estigma de pertença. Foi esse estigma que afogou Judith, o mesmo estigma que sumiu com o corpo de Sophie.
E então Gregory Thompson se rendeu. Levantou-se rapidamente, olhou mais uma vez nos olhos de noite sem lua de Christopher e lhe disse:
- Agradeça por ser diferente de mim.
- São essas diferenças que fazem o mundo andar – concluiu Christopher.
Abrindo um parêntese naquele diálogo inevitável, Gregory lembrou-se:
- A propósito, tratei de sumir com seu nome do processo de Sophie. Voltei a ser o homem perseguido pela tragédia, tendo perdido mulher e filha do mesmo jeito, no mesmo lugar. Percebi que tudo tinha voltado ao normal quando os cochichos no departamento voltaram a sibilar enquanto eu transitava pelos corredores. Para eles não há nada mais cruel do que perder dois entes queridos da mesma forma, sem poder estar lá para ajudar.
De alguma forma Christopher achou o homem a sua frente um pouco sádico, mas entendeu que mais uma vez ele usava aquela máscara de seu ofício. A mesma máscara que usava ao chegar ao Thurston Moore, dias atrás. Estendeu a mão a ele e disse:
- Ainda assim, obrigado por tudo, meu caro. – disse ele estendendo a mão a Gregory. – Quando lhe vejo novamente?
- Não creio que nosso destino é o reencontro – respondeu o homem lhe retribuindo o aperto de mão.
Com olhos tristes e ar acabrunhado, ele afastou-se sem olhar para trás.
Christopher Owens nunca mais ouviria falar de Gregory Thompson, a não ser pelo benefício que todos os meses era depositado na conta corrente de Deliverance. Alguns anos depois, quando até isso findou, a primeira coisa que ele, Emilie e Konstantine pensaram foi que sua morte enfim teria chegado. Para sempre aqueles olhos tristes estariam em suas memórias.

Quando Christopher voltou, apenas subiu os degraus lentamente. Emilie e Konstantine nada perguntaram. Se ele quisesse contar, de uma forma ou de outra mais tarde saberiam.
Remoeu as palavras de Thompson por longos minutos, mas deixou que aquilo se esvaísse para ser guardado em algum lugar de sua memória. Quando se levantou da cama, derrubou sua caderneta encouraçada. Esta se abriu e ele pôde reler:


“Felipe Rossetti”

De súbito, lembrou-se da auteridade daqueles olhos pacientes e esmeraldinos.
Quem seria aquele rapaz que de um jeito muito sutil e breve tinha inserido mais musicalidade em sua vida?

Continua...

Ao som de “Dançando”, Agridoce.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Ininterrupto

O silêncio, a escuridão, o torpor. A água não se tornara algo represável, mas ao menos por aquele instante era uma parede de concreto revolta e gelada. Ele não teve tempo de segurá-la, não pôde gritar para que ela pusesse o cinto, não conseguiu ser rápido para evitar que o movimento brusco pusesse fim em sua respiração, diminuindo em muito a sua chance de permanecer ali, com ele. Mesmo em meio à balbúrdia da água que entrava misturada aos estilhaços e ao sangue em sua boca, ele tentou fazer com que a correnteza não puxasse o seu corpo quase inerte para fora. Aos poucos seus músculos pareciam se afrouxar por sobre os seus ossos, como se sua carne também se desfizesse. Sem forças, foi levado para fora da cabine submersa, e ao sentir-se liberto do cinto reuniu suas últimas forças para chamar pelo nome dela. O esforço, já sabia, foi em vão. Nenhuma réstia de luz penetrava o teto aquoso que se estendia sobre eles. Era um espetáculo de sons abafados, terror abjeto e medo, muito medo.
De súbito foi arremessado para longe por um turbilhão que rodopiou seu corpo fraco. Não conseguia mais pensar em nada, até ir de encontro a algo sólido. Seu crânio pareceu rachar e naquele momento perdeu qualquer resquício de quem era ou do que estava fazendo ali. Deixou-se boiar. Entendeu que se lutasse, morreria primeiro de cansaço.
Quando enfim suas mãos roçaram a areia da margem lamacenta, apenas se arrastou lentamente. Podia ouvir bem distante o som das ondas que roncavam sobre as outras, das gotas que se uniam na superfície do rio que sofria debaixo da sova que recebia do céu. Puxou seu corpo exausto, procurando sustentação no capim que crescia na margem. Quase morto, fechou os olhos. Sentia que perdera algo muitíssimo importante debaixo de todo aquele mundaréu de água, mas infelizmente não se lembrava do que era.
Com os olhos embaçados, viu num nível superior ao dele, na outra margem do caudaloso rio, dois faróis que retornavam em alta velocidade por o que parecia ser uma estrada interrompida. Antes de fechar os olhos para definitivamente esperar a morte, pensou em Deus. Se Ele existisse, que ao menos tivesse piedade de sua alma.

- Exatamente – disse Deliverance sem alterar sequer uma ruga do rosto. – Sophie sempre me falou de vocês. Gostava muito de ambas e uma vez me disse que isso se devia ao fato de que protegiam Christopher.
Um pouco envergonhada, Konstantine baixou a cabeça de forma quase imperceptível. Era estranho pensar no quanto aquela observação a incomodou. Aquilo tinha mudado muito nos últimos tempos. Deixara de lembrar-se de Christopher, deixara de se importar com ele, simplesmente porque achava ter questões mais urgentes. E realmente, as tinha. Uma vez ou outra, num dia chuvoso ou frio, seu nome lhe ocorria. Mas era só uma lembrança. Um tempo bom que passara. E de repente o que ela mais queria era sair dali. Detestava enfrentar suas próprias verdades.
- Ela falava muito pouco da família – recordou Emilie – e ainda assim não mencionava o nome de ninguém. Chegou a nos falar de sua mãe vez ou outra, mas nunca se referiu a você como Deliverance. Apenas dizia “vovó”, com muita ternura, é claro.
E os olhos baços da anciã tornaram-se ainda mais nublados. Ocorreu-lhe um afago distante em sua alma e o perfume de sua neta veio até as suas lembranças. Algo como madeira velha e flores do campo.
- Sabem, por um segundo eu achei que eu nunca o perdoaria. Ele tinha feito aquilo de novo. Quando ele veio até a minha casa, o que eu queria era matá-lo. Na verdade queria que ele tivesse ido junto com a minha Judith. Mas ele estava tão desesperado, parecia uma criança com medo do escuro. Naquela noite ele chegou a minha porta molhado até a alma, enlameado, e só conseguia pronunciar “Sophie” e “Christopher” ininterruptamente.
- Do que é que a senhora está falando? – perguntou Konstantine, novamente atenta a conversa.
- Me desculpem mais uma vez – lamentou pondo a mão em sua testa. – Eu estou falando da noite da morte da minha neta, mas é que preciso também falar que tudo se repetiu.
Definitivamente nada mais fazia sentido para Emilie e Konstantine. Deliverance parecia misturar certos elementos que eram totalmente alheios a elas. Mas acharam melhor deixar que a mente senil da senhora ali presente trabalhasse da forma que mais lhe aprouvesse.
- Fique calma – balbuciou Konstantine parcimoniosamente.
- O que quero lhes dizer é que a mãe de Sophie padeceu do mesmo fim que sua filha. Também ela foi tragada pelas águas. E ele, ele não deixou de ser responsável em nenhuma das vezes. Mas é que eu coloquei no mundo a mulher mais forte e geniosa que aqui pisou. Sei muito bem que Sophie era uma extensão de Judith. Uma extensão sem arremedos. Era a continuação intacta de sua progenitora.

- E foi isso, Gregory – finalizou Christopher com extremo alívio, porém muito pesaroso.
- Agora enfim se lembra da pessoa que sou, não é mesmo?
- Sem dúvidas.
- Quando eu voltei para buscar ajuda, jurei ter chegado tarde, Christopher. Jurei ter perdido tanto Sophie quanto você.
- Só agora também me lembro de que chorei sobre um túmulo vazio.
- Está aí algo que nunca me convencerá da morte de Sophie. Seu corpo nunca foi encontrado.
- Naquela noite choveu demais, Gregory. Estranho seria se ela viesse à tona com todo aquele turbilhão. Eu não enxergava nada, não consegui chegar até o cinto dela. Nós estávamos marcados para morrer, hoje tenho certeza.
- E eu a matei, também.
Christopher nunca pensou ver a cena que se seguiu. O investigador ajoelhou-se à sua frente, fechou os olhos com força e segurou suas mãos, pedindo perdão fervorosamente enquanto seu peito começava a convulsionar e encher-se de soluços. Mas àquela altura, a última coisa na qual Christopher conseguia pensar era em ódio. Estava leve como nunca havia estado. Foi como se tudo aquilo tivesse sido o seu reencontro com Sophie. E de alguma forma aquilo a deixou mais vívida dentro de seu coração, a despeito da dor, da dúvida e da perda.
- Levante, homem. – disse Christopher com um estranho sorriso – Antes mesmo que eu te perdoasse, Sophie já o teria feito.
Puxou o braço do homenzarrão a sua frente, a fim de ajudá-lo a se levantar. Abraçou-o com força, ouvindo o choro que parecia ser o de um menino assustado. Dissera aquilo apenas para apaziguar a situação. Sabia muito bem que não importa quanto tempo passasse Sophie nunca perdoaria o pai. E agora também não o perdoaria por estar ali, compactuando com o mesmo.

- Foi uma noite maldita.
- E por que? - perguntou Konstantine, curiosa.
- Sophie tinha então dez anos e o casamento de Judith e Gregory ia da paz à guerra. Naquela noite ela decidiu que tudo acabaria, então deixou Sophie aqui comigo e voltou para arrumar as malas. Eu estava com tudo organizado para esperar a sua volta, mas de algum jeito meu coração sentia medo. Quando Judith saiu por aquela porta – disse ela apontando para o lânguido corredor que levava à sala de estar – eu sabia muito bem que não a veria viva novamente. Mas ninguém pode viver o destino do outro, não é mesmo?
- Mas, de qualquer forma, era a sua filha... – sentenciou Emilie impressionada com a sua ousadia em dizer aquilo.
- Sim, é claro, mas eu mesma, por toda a minha vida questionei que brio era aquele que nasceu com minha filha. Eu nunca fui de guerrilhas, nunca fui de rompantes. Tenho cá minha magia, bem sei, mas sempre fui de vidro. Judith não. Judith era de aço, sua filha de diamante, não duvido que minha neta pudesse por no mundo uma mocinha talhada em titânio puro. Parecia que a força do seu ventre apenas se renovara em Sophie. Eu mesma nunca tive coragem de desbravar a mata daqueles olhos, nunquinha. Para mim era um mistério, aquele arvoredo. Tenho plena certeza que Christopher viu de perto a fúria que escapava dos olhos da minha neta. Só ele teve a chance de conhecer aquilo de perto. Ele, com aqueles olhinhos de noite sem lua, sem nada para iluminar o caminho, teve de se achar em meio a apalpadelas e subentendimentos.
- Essa é uma das especialidades dele – disse Emilie de repente se lembrando de que bem ali, a poucos metros, estava ele. Sabia que a essa altura, tudo deveria estar em seus devidos lugares.

- O pior foi quando você fugiu do hospital.
- Eu acordei sem saber quem era, sem saber onde estava. Mas na noite anterior, depois de três meses de coma, acordei com um endereço em minha cabeça. Minha mente me dizia o tempo inteiro para ir a uma tal de Alameda Riven Bauer, no número 9.
- Aqui mesmo, do outro lado da rua. A casa de minha sogra.
- Deliverance me acolheu como se eu fosse a mais preciosa das coisas. Mas eu não sabia quem era ela, nem porque estava ali. Me acolheu sem rodeios e quando enfim lembrei certas coisas de mim e do meu passado recente, vendeu-me esta casa por um preço muito amistoso.
- Eu acompanhei tudo de perto, Christopher. Quando soube que estava com ela, fiquei bem mais tranquilo.
O rapaz bem sabia que todo o suporte financeiro que Gregory dava à Deliverance atendia por um nome. Ou, para melhor exemplificar, um sentimento: a culpa. O investigador pareceu se lembrar de algo importante enquanto apalpou os bolsos freneticamente. Quando encontrou o volume que procurava, pôs-se a caminhar para a porta.
- Preciso ir buscar uma coisa – explicou ele abrindo a porta para o jardim escuro e molhado.
Quando Gregory pôs os pés fora, a eletricidade voltou a iluminar a casa com seus lustres velhos, de uma moda passada. Christopher foi até a janela observar o mundo lá fora, foi então que percebeu, olhando contra a luz dos postes que preguiçosamente voltavam a se acender pela alameda, que a chuva praticamente cessara. Ouviu um ronco que instantaneamente lhe pareceu muito familiar. Viu um par de farois se aproximar por entre as frestas da cerca viva e parar ali diante do seu portão. Será mesmo que aquilo era o que ele estava pensando?

E então Deliverance contou tudo. Contou da derradeira briga entre Judith Bartlett e Gregory Thompson, de como sua filha avançou pela estrada até se deparar com a ponte que nunca encontrara a outra margem do rio, de como o amor de Gregory por vezes era sufocante, do quanto Judith sentia-se presa e por isso continuou com o carro até que este saltasse para o que seria o seu fim. Contou que naquela mesma noite Sophie acordou aos gritos e disse estar se afogando, contou que ela também se deparou com a face da morte, de como, exatamente como na data da morte de Sophie, Gregory adentrou a sua casa desesperado e sem chão.
Narrou também da fuga de sua neta, dos planos velados, da promessa de um novo futuro, do quanto amava Christopher e confiava somente nele para ir junto de sua Sophie. Contou como mais uma vez Gregory tinha entregado a outra mulher de sua vida para a morte, para o fundo de um rio debaixo de uma tempestade voraz. Falou da sorte das mulheres daquela família, perdeu-se em sentimentos que nem ela sabia nomear, elencou diversas saudades. E no meio de tudo aquilo, tanto Emilie, quanto Konstantine perguntavam-se o que Deliverance pensava de Gregory Thompson, o homem que invariavelmente havia posto fim em sua família. Não se contentaram, e então perguntaram, em uníssono:
- E o que a senhora pensa sobre o investigador, Deliverance?
- Eu? Eu não penso mais nada. Do que sei é que Deus o fará amargar o fel dos seus dias até o fim dos tempos.

Com um assovio longo e lisonjeiro, Gregory Thompson chamou Christopher pelo vão do portão. Dirigiu-se para fora sem ter ideia do que lhe esperava. Somente se perguntava quando é que ele poderia sentar-se e descansar um pouco, exercitar um ócio que não se amigava dele já havia algum tempo. Quando saiu para a calçada juncada de folhas mortas, olhou incrédulo para o objeto que estava ao lado do meio fio: o Oldsmobile estava ali, novo, sem um arranhão sequer.

- Depois que Christopher acordou desmemoriado do coma, ele veio bater em minha porta. De alguma forma este era o único lugar que ficara cravado em sua mente, mesmo que ele tenha vindo aqui apenas uma vez, numa de suas viagens escondido com Sophie.
- Não deixaria de ser um porto seguro, não é? – disse Konstantine com uma nova ternura nos olhos.
Tanto ela quanto Emilie já tinham se afeiçoado muito àquela senhora. Tinham conversado por horas com ela, tomaram gosto pela poesia de suas palavras, pela forma com a qual mostrava levar a vida, pela magia que parecia emanar de sua pessoa. Sem dúvidas, ela era uma preciosidade viva.
Foi só aí que todas perceberam que a eletricidade havia voltado e que a lareira e a história lhe tinham tirado a atenção daquilo. Não importava, mas lhes ocorria que já deveriam estar de volta, que Christopher as esperava, que já tinham ocupado demais o tempo de Deliverance.
E então Emilie enveredou uma despedida, porém com a alma inquieta, como se esperasse mais revelações.
- Deliverance, eu realmente não sei descrever a nossa experiência aqui, mas é que temos de ir. Já está muito tarde para dormirmos no hotel e dormiremos na casa de Christopher.
- Eu já imaginava. E bem, não se preocupe, esta casa estará aberta a vocês quando bem quiserem!
Konstantine apenas sorriu levemente enquanto levantava junto a Emilie. Ambas foram caminhando com a certeza de um conhecimento de causa recentemente adquirido e que estaria com elas para sempre dali em diante. Deliverance seguiu-as pelo corredor, com os passos arrastados e um pouco cansados. Apanhou um xale estendido ali perto, na poltrona, e avançou para destrancar a porta.
O mundo lá fora se mostrava diferente de tudo o que já tinham visto. Depois de terem escutado tudo o que lhes fora contado, parecia não haver mais fronteiras. O céu ainda acastanhado parecia lamentar muitas coisas; o vento que ainda soprava parecia querer contar outros segredos. E a chuva lavara muitas coisas, a despeito do medo, do receio e das memórias. Não deixaram de dar um terno abraço na senhora poética que as acolhera tão bem e que, agora sabiam, era guerreira das mais valorosas.
O portão velho e enferrujado nas extremidades rangeu alto como se uivasse. Demorou alguns segundos para que as três mulheres se aprumassem diante do que viam. Christopher não conseguiu dizer nada, apenas apoiou-se na porta do Oldsmobile e cruzou os braços, como se esperasse algo de Emilie e Konstantine. Gregory Thompson envergonhou-se, não sabia muito bem o que dizer. Deliverance Bartlett apenas sorriu, bem ali, ainda parada na soleira do portão.
- Mas, como assim? – finalmente perguntou Konstantine.
- Eu ia contar agora mesmo ao Christopher. – explicou Gregory. – Quando tudo aconteceu eu não poderia deixar de procurar Sophie justamente no último lugar onde ela estava. Foi um grande esforço conseguir ajuda da prefeitura para que o carro fosse puxado de lá, mas quando ele finalmente veio á tona, só havia lama e pedregulho. De Sophie, nem resquício.
- Eu acho muito justo uma homenagem como esta, Thompson – disse Emilie enquanto examinava o interior do carro com discrição.
- Era o mínimo que eu podia fazer por vocês, pelo Christopher. Mas agora terei de ir. Por hoje todos precisamos descansar, foi uma noite longa, necessitaremos de tempo para digerir tudo isso.
Na verdade, Gregory Thompson não esperava uma reunião como aquela. Mesmo que não houvesse nenhum esboço de acusação, ele sentia olhares pesados sobre si, olhares que lhe diziam verdades que ele não queria ouvir. Tratou de sair rapidamente, fazendo uma mesura entrecortada, pondo-se a caminhar pela rua lustrosa e silenciosa.
Christopher desviou sua atenção do homem que se afastava, atravessou a rua e abraçou Deliverance com muito afeto e dedicação. Deitando sua cabeça sobre a dela, perguntou:
- E ele, Deliverance?
- Deixemo-lo com ele mesmo. Se nós merecemos, por que é que ele não?
Com mais um abraço, despediu-se da senhora. Segurou as mãos de Emilie e Konstantine e foi andando até a porta de seu jardim.
Aquela noite não seria sonolenta, nem muito menos silenciosa. Eles também precisavam conversar, isso era uma certeza que reinava absoluta.

Quando se sentaram para conversar sobre, descobriram que, mesmo em lugares diferentes, souberam das mesmas coisas. Christopher constatou que Deliverance havia contado toda a história de Judith, e, apostou ele, com toda a poesia e o pesar que usara para contar a ele, numa noite quente de um verão passado, enquanto estavam sentados na varanda, tendo as estrelas por testemunhas.
Emilie e Konstantine falaram de suas impressões, de seus sentimentos, do conhecimento de causa adquirido. De modo algum conseguiriam mensurar tudo aquilo que sentiram enquanto ouviam toda a epopeia das mulheres Bartlett. Além disso, também se sentiam estranhamente culpadas por não estarem junto a Christopher naqueles meses difíceis e borrados. Mas enfim, este era um momento de recomeço, de reparação.
- Vamos, quero que venham comigo ao quintal, meninas – disse Christopher com um tom que parecia ter algo mais.

E quando se levantou, viu a si mesmo no meio da escuridão. Emilie e Konstantine haviam sumido, chovia; a sua frente um rio furioso e alguém que se segurava aos juncos curvados pela tempestade. Era uma massa quase inerte, aquele rapaz. Deitou-se e olhou para cima, de modo que seus olhos encontraram os seus. Então lhe ocorreu uma cronologia inoportuna. Pensou que primeiro viriam os aniversários, as festas, balões coloridos, aquele baile de debutante que assistiu certa vez. Passou um olhar por todas as suas noites em claro. Depois viu os casamentos, os amores, os nascimentos e por fim chegou aos funerais, parou ali, ao pé de uma cama de hospital.  O jovem que ali estava implorava inconscientemente; gritava dentro de si para que não o levassem naquela hora, que ele não queria ir embora. Dizia ter tanto o que fazer, quem sabe até um filho teria, enfim, apenas tinha motivos pra crer que ainda não era hora.
Quando voltou de seu devaneio, percebeu que praticamente flutuara até o quintal. Quando uma lufada acarinhou seu rosto, pensou que todos iam rumo ao acaso e de certa forma sem nunca ter escolhido. “Não é questão de sorte,” pensou, “é jogo vencido”. Aquele era mais um de seus inúmeros epílogos e finais.
O imenso ipê farfalhava majestosamente no centro do quintal gramado. Daquela distância, o trio diferenciava três objetos que se erguiam do chão dispostos em fileira, bem abaixo da árvore que pareciam querer lhes dizer algo.
Quando se aproximaram, viram três lápides simples, de concreto, e em frente a cada uma delas, uma cova rasa e aberta. Emilie e Konstantine ajoelharam-se a fim de ler os respectivos epitáfios. E recitaram, vagarosamente:

Christopher Owens
* 04/01/1991  †15/07/2013

Konstantine Willhelm
* 12/10/1991 †15/07/2013

Emilie Morgan
* 11/05/1992 †15/07/2013

- Então é isso, Christopher? É exatamente o que tínhamos cogitado anos atrás? – disse Konstantine após terminar a leitura vagarosa.
- Sim, Konst. Esta noite nós enfim, morreremos.
Emilie levantou-se e abraçou o amigo. Se fosse alguém de fora, com certeza sairiam correndo. Mas sabiam exatamente do que Christopher falava.
- Pois bem – disse a moça de longos cabelos morenos – vamos lá dentro pegar nossos utensílios mortuários – e sorriu misteriosamente.
Ajudou Konstantine a se levantar, que segurou a mão de Christopher. Voltaram em silêncio para a casa. Era estranho morrer, era estranho deixar tudo para trás, mesmo que não fosse a primeira vez que aquilo acontecesse com qualquer um deles.

Continua...


Ao som de “Epílogos”, Agridoce.


domingo, 26 de maio de 2013

Sobre Querer Acreditar

Precisar, almejar, esperar. Chegar em casa, imaginar possibilidades, planejar futuros.
Mas de repente se dar conta do tamanho do quarto vazio, do cansaço e de nenhum ouvido para ouvir como foi o seu dia, qual são as suas raivas ou satisfações. Nenhum cheiro além do seu para sentir. Nenhum lugar além do travesseiro onde sua cabeça possa encostar.
As raivas contidas sem vazão, as constatações solitas, sem compartilhamento. As preces que parecem não adiantar muito, que parecem não ascender a lugar nenhum. O contentamento insalubre de mais um término de semana esperando que me chegue a porta, que me peça para ir consigo, que lance fora o marasmo e a monocromia desses dias.
O afago que ainda não veio, o sorriso que ainda não foi dado, o olhar de entendimento que não foi direcionado, a extensão que parece não existir.

Às vezes tento imaginar uma pessoa fantástica, que não fizesse nenhum alarde a respeito de nada, que apenas consultasse a carta de vinhos e fizesse o pedido, sem pretensão, porém com autoridade. 
Mas em outros momentos me sinto bem e escrevo durante horas, feliz e sozinho em meu quarto, como se as palavras estivessem o tempo todo aqui. Não quer dizer que eu me sinta solitário, ao menos não com muita frequência. Eu ainda não tenho um relacionamento, mas costumo pensar pouco nessa peculiaridade, justamente para que ela não me roube as ideias, o brio e a inspiração. Algumas vezes, muito ocasionalmente, digamos as quatro horas da tarde de um domingo chuvoso, eu me sinto em pânico e quase não consigo respirar com a solidão. Uma ou duas vezes me surpreendo tirando o telefone do gancho para verificar se está funcionando. Às vezes penso como seria bom ser despertado por um telefonema no meio da noite: "Pegue um táxi agora mesmo", ou "preciso encontrar com você, quero carinho e boa conversa". Mas na maior parte do tempo me sinto como um personagem de um romance de Muriel Spark - independente, aficionado por livros, inteligente e secretamente romântico. Importante lembrar que o ostracismo aumenta em muito o ego da gente. É tática, sabe? É justamente se engrandecer para conseguir diminuir os complexos e as inseguranças. Defesa puramente psicológica.
Eu não estou afim de histórias engraçadas, quero uma mudança, uma ruptura, não anedotas. Minha vida tem sido repleta de anedotas, uma longa fila de equívocos, mas agora eu quero que alguma coisa dê certo, pelo menos uma vez.


A situação: estar emotivo com tudo, mas sem emoção para nada.
O diagnóstico: rupturas significativamente positivas.

Isso aqui não é para ser trágico, nem tragicômico, como quase sempre o faço para diminuir certos hematomas na alma.
É só para ressaltar as noites em que me lembro de que às vezes eu sinto que há um buraco dentro de mim, um vazio que de vez em quando parece queimar. Que se encostasse meu coração em seu ouvido provavelmente ouviria o oceano.
É sobre sonhar não estar só, não ir dormir a noite sozinho.
É sobre às vezes, quando a brisa é morna ou os grilos cantam, sonhar com um amor que faça até o tempo se curvar a ele.
É sobre querer alguém que me ame, sobre querer ser visto.

É sobre temer endurecer por dentro cedo demais. Sobre o fato de que força e dureza são coisas mui diversas.


Ao som de "Together", The XX.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Das Coisas que Renascem

" - Sim, basta - respondeu ele, sorrindo. - Basta para sempre (...)." 
- E então Saymon, vamos? - interrompeu a enfermeira ao chamar-me na porta.
Eu estava tão ansioso que deixei de ler o livro em sua penúltima frase e me direcionei à maca para irmos  ao centro cirúrgico.
Me incomodava aquela roupa larga e aberta atrás, além dos esparadrapos que tinham sido colados nos pelos do meu braço.
Deitado, fiquei observando as luzes do teto que passavam por mim à medida que as enfermeiras empurravam a maca pelos corredores da ala C. Naquele instante eu me lembrei de como eu fazia enquanto criança, deitando no banco detrás do carro, encostando os peitos dos meus pés no vidro gelado e observando as luzes dos postes passarem a intervalos curtos e enchendo o carro de luz dourada. Aquilo sempre me relaxou e naquele instante eu tentei fazer que o mesmo efeito viesse à tona.
Eu tremia um pouco, mas repetia o tempo inteiro: "vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, Saymon."

Quarenta e cinco minutos se passaram, era então uma manhã brilhante do dia 21 de maio de 2009. Esperaram que eu voltasse do processo cirúrgico normalmente, o que de fato começou a acontecer.
Me foram feitas perguntas para constatação da memória, cheguei a fazer piadas rápidas e sonolentas. Mas mesmo eu, em concepções leigas, sabia que algo estava errado. Eu me sentia cansado, era como se uma pedra estivesse sobre o meu peito, ouvia as vozes da equipe médica de modo arrastado. Algo me chamava para um sono do qual eu não conseguia fugir, do qual eu receberia um abraço inevitável.
Tudo em volta escurecia, minha audição era inútil e eu só queria descansar, pois tudo estava pesado demais, tangível demais. Tinha enfim entendido que era hora de ir. Senti como se algo líquido me envolvesse, me tragando enquanto meu corpo flutuava em direção a algo que eu desconhecia. Mas ouvi bips, gente apressada me puxando para cima, por algum motivo eles não queriam que eu me afogasse, o que no momento eu considerava a melhor das sensações.
Tinha paz, tinha silêncio, não a balbúrdia dos meses anteriores, não os traumas até ali, nada de rupturas, ninguém que não me esperasse, algo em que eu confiava mais do que tudo.
Voltei à tona, mas flutuei por poucos instantes. Não tinha forças para permanecer ali, era claro demais, os bips que eu voltara a escutar me incomodavam. Eu queria retornar para o invólucro de paz ao qual eu tinha sido  convidado. E voltei.
Mais uma vez aquelas águas límpidas inundaram todo o quarto e a luz na abóbada cristalina era quebrada pela movimentação das pequenas ondas da parede aquosa acima de mim. Eu esperava descer mais fundo, alcançar o que eu acharia que fosse a areia do limite do meu mar pessoal. Mas fiquei ali, flutuando em meio àquela imensidão azul e silenciosa. Então entendi que eu tinha de esperar.

- Tem algo errado, doutor Ashiles - disse a doutora Fabrycia enquanto eu forçava muito a respiração, com muita dificuldade.
- E então doutor, Ruan? - disse Ashiles.
- A vaga na UTI tem de ser solicitada urgentemente, vou pedir ao enfermeiro responsável.
Exames de sangue foram exigidos, além de um ecocardiograma justamente por eu ter sido reintubado.
E a partir daí o meu prontuário dizia, apontando a evolução clínica:
"Paciente com quadro sugestivo de edema agudo de pulmão no pós-operatório imediato (após exturbação) com manutenção de baixa saturação (88-90) mesmo após O2 em máscara da macronebulização e após administração de medicamentos. Sem intercorrências do ponto de vista da cirurgia".

De onde eu estava, nada se fazia ouvir. Mas comecei a cair em sono profundo, de modo que eu me sentia voltando à tona lentamente. Enfim dormi, esperando que acontecesse o que tivesse de acontecer.
Quando acordei, a água tinha ido embora, tudo estava envolto em uma aura de sonho e pesar. Além daquelas paredes, algumas pessoas esperavam em uníssono por notícias, outras sequer sabiam, outras sequer saberiam.
Horas mais tarde voltei ao quarto, fui recebido por parentes e uma amiga, Aline, que disse com sua paz corriqueira que tinha apenas ido me ver, pois sabia que eu voltaria.
Quando o quarto ficou menos movimentado, eu pude começar a reorganizar os meus pensamentos. Eram tantas perguntas, tantas dúvidas e poucas respostas. Observei tudo o que estava ali, de forma lenta e estática. Olhei para a mesinha posta ao lado da minha maca.
Se eu não tivesse voltado, ali estaria o último perfume que eu teria usado, o último livro que eu teria lido e ainda, as roupas que eu nunca usaria. Pensei nas pessoas que eu nunca conheceria, nos lugares aonde eu nunca iria estar, nas músicas que eu nunca ouviria, nos sorrisos que já não existiriam e muito menos nas lágrimas que nunca mais rolariam. Doeu chorar, pois minha garganta ainda estava machucada e meu tórax cansado. Era como se eu tivesse voltado de uma guerra, apesar de ter mergulhado em profunda paz.
A partir dali, perguntas simples jamais me seriam respondidas, mas seria a partir destas dúvidas que as mais difíceis seriam elucidadas.
22 de maio de 2009 era o meu mais novo aniversário. Começava uma nova fase, um novo tempo. De alguma forma uma das rupturas que eu sempre pedi, tinha enfim chegado.



Enfim, quatro anos se passaram desde o meu inesperado coma. Quando fui levado ao quarto 62, na ala C, todos os boatos convergiam para "o garoto que sobreviveu". Eu carregava dentro de mim um misto de encontros e desencontros que jamais pensei suportar ou carregar, entretanto, já sabia que tudo seria diferente daquele momento em diante.
Até aqui aprendi muita coisa, e claro, ainda tenho muito o que aprender, mas me sinto muitíssimo agradecido por todas as novas alvoradas, as primaveras, os verões e os outonos. Os invernos também, por que não?
Grato por todas as pessoas que pude conhecer, por toda a música que agora faz parte de mim, por tudo o que representa vida, maturidade e continuidade.
Lembrar também que mesmo que esta data caia num anonimato de comemorações, ela sempre estará presente, de uma forma ou outra.
Mesmo inconscientemente, nunca se esquece um divisor de águas.
Afinal de contas, no tear que tece as nossas vidas, não há fios com pontas soltas. Todos estão entremeados entre si e revestidos de significado.


Ao som de "Wind", Brian Crain.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Breveando


Interessante lembrar que, às vezes, os maiores medos, as maiores inseguranças e as maiores ciladas vêm de dentro de nós mesmos. Há que se pensar no que é transponível, no que, com a ajuda dos que amamos, conseguimos deixar para trás sem maiores dificuldades.
Faz parte do caminho, temos de aprender pela trilha pedregosa, ruída, justamente para dar valor à ladrilhada e bem pavimentada.
Ignorar é sensato, mas enfrentar é um ato de bravura imensurável.
Manter a janela fechada ajuda, mas em descompensação os ventos não fluem, o ar se impregna do cheiro de coisa fechada, que apodrece ao sabor da rigidez da prisão.
Ganhar o mundo, caros - do seu jeito, não do meu, porque afinal somos diferentes em muitos aspectos, mas parecidos em outros - requer força, flexibilidade, atenção e temperança. Mas também requer leveza, (ins)piração e descaramento.
É fato que às vezes nos dispomos a tentar consertar as dobradiças das janelas uns dos outros, principalmente  porque a minha sempre vive de reformas, tamanhas as tempestades que adentram por ela.
Tenho deixado que tragam desadaptabilidade, porque só assim aprenderei a lidar com situações diferentes em curtos espaços de tempo.
Testes, uma fase de intensos e ininterruptos testes é o que essa está sendo. Apenas vim para dizer que tenho conseguido vencer a ventania, que tenho superado o frio que estala os ossos. E o que é melhor: tenho apreciado o anoitecer sem medo do amanhecer, sendo ele nebuloso ou não.

Ao som de "Fly", Ludovico Einaude.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Oração para Março

Primeiramente preciso dar as boas vindas à este novo mês. Tua pressa para nascer, Março, roubando dois dias de Fevereiro, é como a minha pressa de ser feliz.
Nunca fui de dar boas vinda à um mês, assim como nunca fui adepto a pedir que ele me traga o que o anterior me roubou ou privou. O que realmente não quero é que o negrume das últimas três semanas não se repita e que agora estas nuvens pesadas se dissipem.
Foi a primeira vez que um fevereiro foi tão pesado para mim, mas creio que ele assim o foi para muita gente, também.
Discurso de gente preguiçosa à parte, um mês que nasce numa sexta feira não apresenta muitas premissas ruins.
Mas enfim, só precisava mesmo era expressar meus pedidos. 
O que mais quero para esse mês e para os próximos é justamente que eu consiga deixar tudo claro, em atos, palavras e intenções.
Quero perceber e dar mais campo aos belos projetos que se refletem na ligação da mente com o coração. E óbvio, manter os pés no chão, pois imaginação pode tanto engrandecer quanto revelar miragens e fantasias.
Não quero criar dubiedade ao dizer algo com as palavras e outra coisa com o coração.
Preciso me lembrar de vivenciar a Arte, a criatividade e a beleza, o que sei que está sempre ao meu redor, mas que acaba ofuscado pela faina do cruel cotidiano.
Que as águas de março sejam potáveis e é claro: fluam na direção certa, sem balbúrdia ou pedregulhos pelo leito deste rio chamado ano.
Que assim seja e assim se faça!

Ao som de "Only Time", Enya.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Do excesso de tudo

Pelo avançado da hora e de acordo com o seu estado de espírito, ele sentia como se décadas tivessem se passado. Vira o sol se pôr lentamente sob a sua janela; pálido, envolto em névoa e cheirando a lençol limpo.
O afago era o do travesseiro, a música eram as contas do terço que chacoalhavam minimamente a cada lufada de vento que entrava fazendo balbúrdia e brincando com o filtro dos sonhos.
Deitou-se e fitou o teto por alguns instantes enquanto as sombras se espalhavam pelo chão e se alongavam a partir dos cantos.
Ocorreu-lhe que a cada passo, a cada novo movimento, percebia que tinha se tornado um livro em branco. Não havia nada escrito nele naqueles últimos dias.
Pensou que naquele momento, tudo era um borrão, um amontoado.  
Levantou-se bruscamente, buscou entre os calhamaços dispostos de forma pouco organizada um registro do que ele havia sido há pouco na tentativa de começar uma reconstrução a partir dali. Correu dedos leves sobre os cortes dos livros que permaneceram calados; perguntou à Virgem que o olhava complacentemente, em gesso e tinta.
Engaiolou distrações, encaixotou desvios e calou dúvidas. Iriam lhe atrapalhar na fímbria daquela busca.
Foi se cansando de novo e voltou lentamente ao seu posto estofado.
Preocupou-se. Andava esgotando as forças muito rapidamente, recorrendo aos sonhos e sonos repetidamente. Achava que aquilo tinha tons de escravidão mental, ou mesmo precoce fastio.
Mas constatou que aquilo tinha nome curto e pesado. Olhou para longe, com os olhos envoltos em nuances de céu tempestuoso, com cílios crispados emoldurando um cristal quebrado. Abriu os lábios bem levemente e disse em tom glacial: "Falta".
Falta, saudade, pesar, mágoa, receio. Foi recolhendo tudo o que tinha deixado deixado cair pelo chão do quarto, amassou tudo a fim de mantê-los uniformes e compactados. Não engoliria, como o fez da última vez. Sacou o isqueiro ao lado e queimou as bordas do monturo. A labareda tristonha bruxuleou, lambendo lentamente as frustrações que chiavam e xingavam, pouco educadas.
O que ele queria agora era voltar a dormir, mas tinha atiçado o trabalho de sua mente. Percebeu que na verdade, precisava era esquecer muitas coisas. Sentou-se lentamente na borda da cama  e perguntou-se, distanciando-se mais uma vez do seu ponto de descanso: 
"Será que esquecer é a mesma coisa que ter perdido?".

Ao som de "Alone Apart", Markéta Irglová.